Crônica da saudade

Sinto saudade da minha infância, das bonecas que tive e que poderia nunca ter tido, se ele não tivesse me dado. Saudade da centopeia colorida enorme, que ocupava minha cama toda. Sinto saudade da casa, do almoço de marmita, que, embora eu detestasse, virou marca da minha infância.

Sinto saudade de esperar, ansiosa, minha mãe e seu marido chegarem de viagem para ver o que tão carinhosamente ele havia escolhido e trazido para mim.

Uma centopeia do alto da vitrine de uma loja? Uma boneca nova enorme? Um super ovo de Páscoa? Um estojo de cachorro salsichinha? A mochila do Bob Esponja que eu tanto disse que queria?

Sinto saudade das compras no mercado, que eram o que qualquer criança queria, nada de arroz nem feijão, mas muito Danone, biscoito, chocolate, pizza!

Até do quarto quentinho e bonito, mas que eu detestava dormir nele sozinha, eu sinto saudade. Porque na sala, logo de frente, tinha alguém que se importava com meu medo, e ficava de plantão, com luz acesa, lendo a Bíblia até eu adormecer. E se eu acordasse, era ele quem me acolhia.

Sinto saudade de ter companhia para ir ao mercado comprar, desnecessariamente, todas as Maizenas das prateleiras, só para eu completar a minha coleção de agarradinhos, que vinham como brinde. De nada importava se a gente não sabia o que fazer com tanta Maizena, se eram os agarradinhos meu sonho da vez.

Sinto saudade das viagens, dos chalés de Sul de Minas e do feijão tropeiro do Parque das Águas, no almoço de família.

Saudade dos domingos pontuais no restaurante Pequenos Bar e dos cornetos de sobremesa. De andar cerca de 40 quilômetros somente para tomarmos nosso sorvete preferido e depois voltar para casa.

Saudade, em especial, do homem que foi meu primeiro e maior exemplo de uma constante busca por evolução. Um exemplo de que homem chora. E se arrepende. E erra. E caso se arrependa de novo, pede desculpas quantas vezes precisar. E busca ser melhor. E busca Deus. E enfrenta lutas sem nunca desistir.

Hoje, no trabalho, com a notícia de perda dessa pessoa tão especial, vêm-me estas reminiscências na mente. No nariz, o aroma dos perfumes importados que ele tanto gostava e também o cheiro de bebês da Cotiplás os quais ele adorava me presentear no Natal. Na boca, pareço sentir o gosto da azeitona Tio Paco que, como experts, escolhíamos, criteriosíssimos.

Entre lágrimas contidas, consigo, ainda, rir das orações infinitas do almoço em que eu dizia antes: minha mãe pode orar hoje? Porque se fosse aquele homem, que tinha tanto a agradecer, que orasse, a oração terminaria na hora do jantar.

Agora, no refeitório da empresa, almoço minha marmita lembrando de seu apreço pela culinária e pelo famoso “cozido” de cada dieta. Dos hot-dogs que comíamos em uma cidade vizinha a cada vez que nos pintava na telha.

Tento esconder minhas lágrimas dos colegas, mas lembro que ele me ensinou que não há problema nenhum em chorar. Então, choro de saudade. E percebo o quanto muito do que sou, aprendi com ele: o gosto por viajar, a paixão por azeitona, a importância de pedir desculpas, de chorar, de amar, de cuidar.

E, apesar das tantas “saudades de” hoje carrego o “ainda bem que”. Pois mesmo que não tenha lhe dito adeus, após alguns anos distantes, eu disse-lhe: “você foi importante na minha vida”, “sinto saudade”.

Eu, que não gosto de fim, assisto ao dele – aqui na Terra –  e não sei como terminar essa crônica exatamente por não gostar de finais. Sei que não posso escrever para sempre, tentando evitar o fim desta história e, talvez, da dele, porque hoje ele me prova a finitude da vida, que eu, só agora, quase aos 27, começo a entender.

O choro me engasga ao tentar falar, mas as obrigações me chamam e eu concluo para mim mesma, nesta Crônica da Saudade, que sou feliz por ter sido escolhida por uma pai que não tinha a obrigação de ser meu, mas que foi por que quis.

Sinto-me na necessidade de dizer apenas uma coisa a mais (quebrando a quarta parede): Espero ter a certeza de ir para onde tenho a certeza de que você foi. Até logo, Dengo.

Em memória de Elilson Ângelo.

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